Quão menos farinha, maior há de ser a prioridade da educação básica

Élida Graziane Pinto

Procuradora do Ministério Público de Contas -TCE-SP

A crise econômica pela qual o Brasil tem passado desde meados de 2014[1] chegou a uma encruzilhada histórica quanto ao debate político-institucional, que clama por soluções democraticamente sustentáveis[2] para o seu enfrentamento estrutural.

Às vésperas do processo eleitoral de 2018, urge pautar o problema aparentemente insolúvel (um nó górdio?) sobre o que é, de fato, prioridade alocativa dos orçamentos públicos em nosso país. O parecer prévio às contas do presidente da República de 2017, emitido pelo Tribunal de Contas da União[3] no último dia 13, chegou a apontar risco iminente e consistente de paralisia[4] nas contas públicas em decorrência tanto do teto fiscal trazido pela Emenda 95/2016 quanto do manejo abusivo das renúncias fiscais[5].

O desafio de como promover republicana e legitimamente a distribuição dos escassos recursos públicos se revela ainda mais complexo em momentos de crise fiscal como a que temos passado. Quão menor, a cada dia, a quantidade de farinha a ser (re)distribuída, mais avidamente diversos setores organizados se apressam em apresentar o seu pirão primeiro, independentemente da agenda constitucional de prioridades alocativas em prol dos direitos fundamentais que deveriam ser difusamente promovidos em favor de toda a sociedade.

Por outro lado, também a federação brasileira se deteriora em seus pilares. O registro de dois exemplos dramáticos e recentes disso se faz aqui oportuno: o primeiro deles reside na aparente rota de fracasso da medida extrema de intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, que completa quatro meses com o aumento de 36% nos tiroteios verificados na capital fluminense em relação aos quatro meses imediatamente anteriores[6]. Já o segundo exemplo sobre o esfacelamento do nosso projeto constitucional de federalismo cooperativo reside na propositura de arguição de descumprimento de preceito fundamental por quase todos os governadores[7], perante o Supremo Tribunal Federal, contra a falta de repartição tributária das contribuições sociais arrecadadas pela União e parcialmente desvinculadas por meio da DRU (cuja vigência deve se estender desde 1994 até 2023, por força de oito[8] sucessivas emendas constitucionais ao ADCT!).

Inúmeros conflitos distributivos se acumulam e concorrem entre si, ainda que não tenhamos suficiente clareza a seu respeito. Vale lembrar, em igual medida, o fato de que a paralisação de caminhoneiros (com o apoio, ou não, das empresas transportadoras que lhes contratam) se tornou, no mês passado, um tema-problema nacionalmente muito mais visível e questionado[9] do que os ataques especulativos cambiais[10], muito embora ambos intencionem o mesmo alvo, a pretexto de nacos de proteção orçamentária[11].

Como dinheiro não cai do céu, tampouco há margem para financiamento inflacionário ou majoração significativa da carga tributária na realidade brasileira atual, a fatura é rolada intergeracionalmente, inclusive no que se refere ao impasse acerca de qual reforma previdenciária é necessária e socialmente legítima.

Por óbvio, tantos e tamanhos impasses superpostos repercutem — direta ou indiretamente — na trajetória da dívida pública, sobretudo, da União. Ora, a velocidade e a intensidade da crise fiscal (mais uma vez o dilema da “farinha pouca”) trouxeram à tona, nos últimos dias, a agenda da falta de limites[12] e balizas acerca da gestão discricionária da dívida pública pelo governo federal[13]. Referimo-nos a duas importantes decisões recentes na seara do seu controle externo e judicial. São elas: o Acórdão TCU 1084/2018-Plenário[14] e a decisão[15] prolatada pelo juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal de Brasília, nos autos da Ação Civil Pública 1005935-28.2017.4.01.3400, onde fora deferido o pedido de realização da auditoria prevista no artigo 26 do ADCT.

Ainda que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região tenha sustado essa última decisão, subsiste o debate sobre a falta de transparência, motivação e limites para se aferir, sobretudo, os custos e riscos fiscais do regime jurídico da dívida pública federal, tal como bem apontado no item 9.2 do mencionado Acórdão TCU 1084/2018, onde se buscou informar:

“ao Presidente do Senado Federal que a não edição da Lei prevista no art. 48, inciso XIV, e da Resolução de que trata o art. 52, inciso VI, ambos da Constituição da República, para o estabelecimento de limites para os montantes das dívidas mobiliária federal e consolidada da União, assim como da lei que prevê a instituição do conselho de gestão fiscal, constitui fator crítico para a limitação do endividamento público e para a harmonização e a coordenação entre os entes da Federação, comprometendo, notadamente, a efetividade do controle realizado pelo Tribunal de Contas da União com base no art. 59, § 1º, inciso IV, da Lei Complementar 101/2000, e o exercício do controle social sobre o endividamento público e demais limites fiscais” (grifo nosso).

Ao fim e ao cabo de todo esse rol de fraturas fiscais expostas em carne viva no corpo da nossa democracia, o que esperamos é que haja resiliência constitucional do pacto civilizatório de 1988, para que não retrocedamos à barbárie de quem clama — ingênua ou maliciosamente — por intervenção militar[16].

Se vivo estivesse, Carlos Drummond de Andrade nos perguntaria: “E agora, José?”. Em face do fato de haver quem diga que vivemos uma recessão democrática[17], o mesmo Drummond nos responderia: “Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?”. Poética e enigmaticamente, a questão de fundo é para onde vamos…

Para onde vamos? Para onde vai nossa democracia? Para onde vai nosso compromisso constitucional[18], se é que efetivamente o temos?

Há cerca de 20 anos, mais precisamente no dia 27 de maio de 1998, o saudoso professor Rubem Alves escrevera uma lindíssima carta aberta[19] ao então ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, para que assumisse a missão de tornar a pasta “mais importante na vida política do país”, vez que:

Se o Ministério da Educação for só um gerenciador dos meios escolares, será difícil ter esperança. Pensei, então, que o ministério talvez tivesse poder e imaginação para integrar os meios de comunicação num projeto nacional de educação: semear os sonhos de beleza que se encontram no nascedouro de um povo. Assim, realizaria a sua vocação política de criar um povo. Por isso, Paulo Renato, considero sua posição de ministro da Educação a mais importante na vida política do Brasil. Da educação pode nascer um povo.

Os sonhos de beleza a que se refere Rubem Alves foram inscritos em nossa Constituição, mas precisam ser cumpridos na forma do Plano Nacional de Educação, inscrito na Lei Federal 13.005, de 25 de junho de 2014, para, de fato, gerarem a força criativa e constitutiva do povo que coletivamente ainda não somos no Brasil.

Não é demagogia afirmar que esperança de solução só existe na e por meio da educação básica, assegurada pelo Estado em caráter universal, gratuita e equitativamente, mediante padrão mínimo de qualidade, para todas as nossas crianças e jovens. As trajetórias trilhadas, há cerca de 50 anos, pela Coreia do Sul e Finlândia nos dão prova de que é possível e bem-sucedido o propósito de conduzir povos nacionais para um elevado padrão de desenvolvimento econômico e social por meio do compromisso constituinte/constitutivo com a educação.

Na próxima segunda-feira (25/6), nosso segundo e atual Plano Nacional de Educação completará seu quarto aniversário. Já quase na metade da sua vigência, o saldo do 2º ciclo de monitoramento[20] sobre o estágio de cumprimento das metas e estratégias do PNE é desolador, porque a única norma ali integral e efetivamente executada foi precisamente a realização de tais avaliações bienais[21].

Nesse sentido, o balanço crítico[22] feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação é contundente de que mesmo o relatório feito pelo Inep é omisso quanto à avaliação do financiamento educacional em valores relativos ao PIB, apresentados apenas até 2014 e sem o registro de dados segregados por ente federado, o que, por óbvio, oculta a grave omissão inconstitucional da União em regulamentar o custo aluno-qualidade inicial (CAQi).

Saber-se descumpridor recalcitrante do planejamento decenal da educação[23] é, no mínimo, medida de transparência perante a sociedade. Mas nada fazermos diante disso é um descompromisso constitucional mortífero em relação aos princípios do artigo 206, às obrigações inscritas no artigo 208 e sua conformação sistêmico-operacional a ser executada por meio do dever de planejamento suficiente previsto no artigo 214, todos da Constituição de 1988.

Neste quarto aniversário do PNE, o clamor latente que fica, em meio ao risco de uma franca ruptura dos nossos mais primários pilares constitucionais, é a mesma esperança de Rubem Alves: quão menos farinha, mais prioritária há de ser a educação básica, única capaz de reacender os sonhos de beleza do povo brasileiro, em termos de maior produtividade, equidade e vida digna para todos.

Na dúvida, nosso país se pergunta “para onde?”, tal qual José. A resposta constitucional é clara: diante do conflito da escassez orçamentária e financeira, educação básica pública, universal, equitativa e de qualidade deve vir primeiro.


[1] Como noticiado em http://www.valor.com.br/brasil/4163592/brasil-esta-em-recessao-desde-2-trimestre-de-2014-nota-comite-da-fgv.
[2] Há quem analise haver uma fadiga do ajuste fiscal (http://www.valor.com.br/brasil/5596821/pais-se-aproxima-da-fadiga-do-ajuste-fiscal) ou mesmo uma inviabilidade/impossibilidade de permanência do teto global de despesas primárias trazido pela Emenda 95/2016 (a exemplo do que se pode ler em http://www.valor.com.br/brasil/5331709/ifi-ve-risco-muito-alto-para-o-teto-de-gastos-em-2019, https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2018/06/economistas-liberais-racham-pelo-teto.shtml e http://www.valor.com.br/cultura/5596361/quando-conta-do-impeachment-chega-mesa).
[3] O parecer prévio consta do Acórdão TCU 1322/2018–Plenário e encontra-se disponível em http://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A81881F6364D8370163FF80EB4645E1, o qual foi noticiado em http://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-aprova-com-ressalvas-as-contas-do-presidente-da-republica-relativas-a-2017.htm.
[4] Conforme se lê em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/teto-dos-gastos-vai-paralisar-contas-publicas-aponta-relatorio-do-tcu.shtml.
[5] Como noticiado em https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2018/06/relatorio-do-tcu-traz-alertas-sobre-teto-de-gastos-e-renuncias-fiscais e http://www.valor.com.br/brasil/5594169/tcu-critica-elevacao-da-renuncia-fiscal-nas-contas-de-2017. Interessante notar abuso detectado até pelo próprio secretário da Receita Federal Jorge Rachid, em sua entrevista publicada na Folha de S.Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/estado-brasileiro-esta-dando-beneficio-fiscal-ate-para-salmao-e-file-mignon.shtml.
[6] O balanço pessimista de quatro meses de intervenção federal no Rio de Janeiro é discutido em https://www.revistaforum.com.br/apos-quatro-meses-de-intervencao-militar-tiroteios-aumentam-36-no-rio/ e https://oglobo.globo.com/rio/especialistas-criticam-os-quatro-meses-de-intervencao-resultado-micro-22790595.
[7] Noticiada em https://www.poder360.com.br/justica/24-estados-e-df-vao-ao-stf-pedir-liberacao-do-repasse-da-dru/.
[8] A esse respeito, o problema — ademais de revelar severo impasse federativo — me parece implicar também lesão ao custeio dos direitos fundamentais albergados pelo Orçamento da Seguridade Social. Ao meu sentir, a 8ª prorrogação da DRU configura um verdadeiro “Réquiem para o Orçamento da Seguridade Social”, como defendi em https://www.conjur.com.br/2017-mar-28/contas-vista-inconstitucionalizacao-requiem-despesas-seguridade-social.
[9] A esse respeito, uma excelente análise histórica do quadro de rent seeking em que o orçamento público brasileiro se encontra (capitalismo de compadrio?) no período pós-Constituição de 1988 foi feita por Bruno Carazza em https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/25/temer-e-lula-na-boleia-do-caminhao/.
[10] Trata-se de debate necessário acerca do quão flutuante é o câmbio brasileiro e sua frágil exposição a ataques especulativos, cuja pauta pela majoração da ração diária de swaps cambias tem elevados custos e riscos fiscais. É o que se pode ler em http://www.valor.com.br/valor-investe/casa-das-caldeiras/5573791/mercado-chama-bc-para-briga, https://www.cartacapital.com.br/economia/o-pais-e-refem-do-cenario-externo-e-dos-especuladores-internacionais e https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/bc-e-fazenda-montam-equipe-antiespeculacao.shtml.
[11] Como noticiado em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,greve-dos-caminhoneiros-deflagra-guerra-dos-lobbies-por-beneficio-fiscal,70002352972.
[12] Como debatemos José Roberto Afonso, Lais Khaled Porto e eu em artigo publicado nesta coluna “Contas à Vista”, que se encontra disponível em https://www.conjur.com.br/2017-dez-05/contas-vista-inconstitucional-omissao-limitar-divida-publica-federal.
[13] Notadamente na interface entre as políticas fiscal, monetária, creditícia e cambial, tal como decorre das intricadas e ainda insuficientemente avaliadas relações entre Tesouro Nacional e Banco Central, como debatido em https://www.conjur.com.br/2018-fev-27/contas-vista-precisamos-debater-custos-riscos-regime-juridico-bc e https://www.conjur.com.br/2017-jun-16/opiniao-ldo-estimar-riscos-fiscais-relacao-entre-tesouro-bc.
[14] Inteiro teor disponível em https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A1084%2520ANOACORDAO%253A2018%2520COLEGIADO%253A%2522Plen%25C3%25A1rio%2522/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false.
[15] Cujo inteiro teor divulgado em https://www.poder360.com.br/wp-content/uploads/2018/06/14-vara-auditoria-di%CC%81vida-pu%CC%81blica.pdf.
[16] Como bem debatido em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/05/conrado-huebner-mendes-e-rafael-mafei-rabelo-queiroz-nao-existe-intervencao-militar-constitucional.shtml.
[17] Embora não se trate de debate recente ou inédito, vale trazer, a título de exemplo instigante, as provocações feitas por Celso Rocha de Barros no texto disponível em http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-brasil-e-recessao-democratica/.
[18] Oscar Vilhena, por ocasião do aniversário dos 29 anos da Constituição de 1988, escreveu artigo de mesmo nome (publicado originalmente em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2017/10/1926926-compromisso-constitucional.shtml), cuja sua síntese assim nos provoca: “Evidente que ainda estamos longe de alcançar os objetivos estabelecidos pelo Pacto de 1988. A questão que se coloca, porém, é se neste momento de crise devemos reafirmar nosso compromisso constitucional, nos concentrar na remoção dos verdadeiros obstáculos à “construção de uma sociedade mais justa”, ou simples e cinicamente abandonar o projeto de nação concebido pela Constituição?”.
[19] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz27059809.htm.
[20] O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou, no dia 7/6/2018, o “Relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação – 2018”, disponível em seu inteiro teor em http://portal.inep.gov.br/informacao-da-publicacao/-/asset_publisher/6JYIsGMAMkW1/document/id/1476034.
[21] Como noticiado em http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-06/pne-completa-4-anos-sem-cumprir-metas-intermediarias e http://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2018/06/apos-quatro-anos-apenas-uma-meta-do-plano-nacional-de-educacao-foi-cumprida.
[22] Disponível em http://campanha.org.br/plano-nacional-de-educacao/depois-de-4-anos-de-vigencia-do-plano-nacional-de-educacao-dentre-os-dispositivos-com-prazo-entre-2014-e-2018-somente-um-foi-cumprido-integralmente-e-30-parcialmente/ e http://semanadeacaomundial.org/2018/2018/06/04/balanco-pne/.
[23] Como, aliás, já denunciamos por ocasião do 2º aniversário do PNE em https://www.conjur.com.br/2016-jul-01/elida-pinto-dois-anos-pne-inadimplencia-educacao-basica.