O Problema não é o mecanismo

Desde que foi lançada a série “O mecanismo”, do cineasta José Padilha, opiniões contrárias e a favor têm sido veiculadas em praticamente toda a mídia nacional. Abriu-se acalorado debate, nos blogs, posts e outros espaços nas redes sociais e na internet, discussão que chegou até às páginas dos grandes jornais do País. Para quem ainda não conhece, a série é, na definição de seu criador, uma dramatização inspirada em fatos reais que ilustra a tese de que há no Brasil um mecanismo, sem ideologia política ou coloração partidária, que, mediante a articulação entre agentes públicos, empresas estatais, empreiteiras e operadores, faz movimentar um gigantesco esquema de corrupção de verbas públicas que contamina as três esferas da administração pública brasileira, envolvendo parlamentares, partidos políticos, membros dos poderes Executivo e Judiciário. Os que escrevem contra o mecanismo querem, como o personagem central da trama, o ex-policial federal Marco Ruffo, vivido pelo ator Selton Mello, enfrentá-lo, “matá-lo na raiz”. Tenho ouvido e lido muitas opiniões que falam em acabar com o mecanismo. Não creio que o problema seja o mecanismo. Explico.

Como didaticamente expõe Ruffo na série, em um diagrama que afixa na parede do escritório paralelo de investigação que monta na garagem de casa, o mecanismo é um círculo em que agentes públicos designam os diretores de empresas estatais e estes dão a empreiteiros selecionados as obras públicas com superfaturamento, sendo que o excedente pago com dinheiro público volta aos agentes públicos via operadores financeiros, os doleiros. Esse círculo, constata o personagem, seria infinito e ocorreria em todas as esferas da administração pública, desde a grande empresa, representada na trama pela “Petrobrasil”, até o “Seu João”, pequeno encanador que integra esquema de corrupção na empresa de saneamento local. A questão que vejo é: deve esse círculo ser quebrado, parado, descontinuado? Penso que não. A solução para o problema é outra.

Excetuando-se os operadores, os doleiros, esse círculo integrado pelos agentes públicos, pelas empresas estatais e pelas empreiteiras é o ciclo da produção do País e da formação de riqueza. O mecanismo que veicula a corrupção é o mesmo que veicula a riqueza. Descontinuar, quebrar, parar o mecanismo seria, em última análise, produzir reflexos no PIB do País, com o comprometimento das empresas e dos empregos por elas gerados. Imaginemos esse mecanismo como um sistema, o corpo humano, por exemplo, já que na série o ex-policial qualifica o mecanismo como um câncer. O problema, vê-se logo com essa analogia, não está em romper os vasos para impedir a circulação do sangue que alimenta o câncer. A questão está em injetar sangue novo, um fluido “medicado”, livre da contaminação que, aos poucos, seja capaz de purificar o sistema como um todo. Injetar virtude no círculo para que ele se transforme de um círculo vicioso em um círculo virtuoso. Como fazer isso?

Tenho defendido há alguns anos, por todo o Brasil, a tese da implantação de uma Política de Governança Pública que acredito possa oferecer solução para muitos dos atuais males por que passa o País. Por iniciativa nossa, o Governo Federal editou o Decreto 9203/2017, no qual uma das principais estruturas previstas é o Comitê Interministerial de Governança (CIG), que já foi implementado e realizou sua primeira reunião, tendo sido elaborado um roteiro para que os ministérios avaliem seus

programas e políticas públicas, o que tende a produzir melhorias exponenciais na maioria deles, com possibilidade de eliminação de sobreposições, segmentações e contradições e, no limite, descontinuar determinados programas e políticas, caso se chegue à conclusão de que são inviáveis ou ineficazes. Na questão da corrupção, o decreto cria programa de integridade no Governo Federal, semelhante ao que as empresas que pretendem fazer acordos de leniência são obrigadas a assinar. Esse programa de integridade cria ações e regras para dificultar o desvio de recursos públicos e foi objeto de recomendação do Comitê para que sua implementação seja acelerada.

No mesmo dia da assinatura do decreto, foi remetido ao Congresso Nacional um projeto de lei (PL 9163/2017), que estenderá essas boas práticas aos demais poderes da União e a Estados e Municípios. Estamos monitorando a tramitação do aludido PL e também atuando junto à Confederação Nacional dos Municípios (CNM), de forma que os próprios municípios façam as suas leis de governança. Já negociamos com o município de Maragogi/AL uma minuta semelhante ao decreto do plano federal, que será utilizada como modelo pela CMN, que elegeu a melhoria da governança pública como o principal assunto da Marcha de Prefeitos deste ano, assim como do debate que haverá com os principais candidatos à Presidência da República.

No âmbito dos estados, estamos contando com o apoio dos Tribunais de Contas dos Estados e com o Conaci (Conselho Nacional de Controle Interno), instituições que, por ocasião do último Fórum Nacional de Controle, realizado na sede do Tribunal de Contas da União, comprometeram-se formalmente com a luta por normativos estaduais de governança.

Mais recentemente, temos iniciado a realização de uma série de cursos para implantar a governança na alta cúpula das Instituições da Administração Pública brasileira, entre elas Polícia Federal, Ministério Público Federal, Polícia Rodoviária Federal, entre outras.

Com essas iniciativas, vamos avançando nos âmbitos federal, estadual e municipal na busca do estabelecimento de um conjunto de regras de conduta, um novo modus operandi, que faça injetar virtude nas veias da administração pública brasileira.

A solução não passa, como apregoam alguns, pela supressão ou transformação de Instituições hoje muito criticadas como, por exemplo, a classe política. A presença da democracia é intrínseca à existência do Estado Democrático de Direito em que vivemos atualmente. Porém, como as sociedades modernas são complexas, a ideia de democracia está condicionada à ideia de representação, onde a representatividade é dada pelas casas legislativas, nas quais se expressa a vontade do povo. Assim, se quisermos democracia no Brasil, não podemos prescindir do Parlamento. Mas a democracia tem de ser participativa, e essa participação, por assim dizer, essa corresponsabilidade – no que se refere ao controle da administração pública brasileira – não deve ser somente do TCU, ou da CGU; do Ministério Público ou da Polícia Federal; ela deve ser também do dirigente da estatal, do empreiteiro, do cidadão, de todos, enfim.

A Governança pode ser entendida como um modo de fazer, uma mescla de instrumentos representativos que estabeleça regras de como fazer funcionar a roda do mecanismo sem os vícios que corrompem o seu natural curso, que é o de produção de

riqueza e renda no País. Tenho dito, inclusive nos dois livros que publiquei sobre o tema da Governança1, que na medida em que estabelecermos um novo conjunto de ferramentas – com indicadores de governança, controle de riscos, ocupações de cargos baseada na meritocracia – poderemos propiciar condições aos novos governantes que serão eleitos este ano, inclusive o Presidente da República, para que, paulatinamente, esse fluido renovado possa ir descontaminando o mecanismo e permitindo o seu retorno ao funcionamento dentro do esperado, isto é, com a circulação e produção de riqueza sem desvios, sem malversação de recursos públicos, com crescimento e prosperidade para o País e para o setor privado.

Acredito firmemente que sem essa renovação de métodos, regras e práticas de governança, infelizmente pouco ou nada mudará apenas com a troca dos governantes, e o mecanismo continuará o seu funcionamento em círculo vicioso, a despeito de quantos queiram enfrentá-lo, combatê-lo ou descontinuá-lo.

Augusto Nardes – Ministro do Tribunal de Contas da União.